domingo, 24 de agosto de 2008

A Guerra da Geórgia e a nova configuração da ordem internacional

O Professor Alexandre Garrido da Silva envia para ser postada essa matéria sobre a nova configuração da ordem internacional após a Guerra da Geórgia. Matéria essa publicada no Caderno "Mais" da Folha de São Paulo de 24 de agosto de 2008.
Um mundo desregrado
Conflito entre Rússia e Geórgia marca a ascensão de relações multipolares perigosas, em que as potências testam umas às outras
SLAVOJ ZIZEKCOLUNISTA DA FOLHA
D iz a visão pós-moderna que não existe realidade objetiva: nossa realidade consiste em múltiplas histórias que nos contamos sobre nós mesmos. Sendo assim, a guerra recente na Geórgia não foi altamente pós-moderna? Temos a história de um pequeno e heróico Estado moderno defendendo-se contra as ambições imperialistas da Rússia pós-soviética, a história da tentativa dos EUA de cercar a Rússia com suas bases militares, a história da luta pelo controle dos recursos petrolíferos etc. Mas, em lugar de nos perdermos no labirinto dessas histórias concorrentes, devemos voltar nossa atenção a algo que está faltando e cuja ausência está desencadeando a explosão de relatos políticos em curso. Conhecer uma sociedade significa conhecer não apenas suas regras explícitas -devemos saber também como aplicar essas regras. Normas implícitas Durante os caóticos anos pós-soviéticos do governo de Boris Ieltsin na Rússia [1991-99], o problema podia ser identificado assim: embora as regras legais fossem conhecidas, o que se desintegrou foi a complexa rede de normas implícitas, não escritas, que sustentavam todo o edifício social. Se, na União Soviética, você quisesse um tratamento hospitalar melhor ou um apartamento novo, se tivesse uma queixa contra as autoridades, você sabia o que era preciso fazer de fato, a quem se dirigir, quem subornar. Após a queda do poder soviético, um dos aspectos mais frustrantes do cotidiano das pessoas comuns era que essas regras não escritas acabaram ficando confusas: as pessoas não sabiam mais o que fazer, como reagir, como relacionar-se com regulamentos legais explícitos, quais desses podiam ser ignorados, em que casos o pagamento de propinas poderia funcionar etc. A estabilização obtida sob o governo de Putin equivale em sua maior parte à recém-estabelecida transparência dessas regras não escritas: hoje, na maioria dos casos, as pessoas já sabem novamente como reagir na complexa teia das interações sociais. Ainda não alcançamos esse estágio na política internacional. Nos anos 90, um pacto silencioso regulamentava o relacionamento entre as grandes potências ocidentais e a Rússia: os Estados ocidentais tratavam a Rússia como grande potência, sob a condição de que ela não agisse concretamente como tal. Mas e se a Rússia começasse de fato a agir como grande potência? Uma situação como essa provavelmente seria catastrófica, ameaçando fazer ruir toda a trama existente de relações. E algo dessa natureza foi o que aconteceu agora na Geórgia: cansada de ser apenas tratada como superpotência, a Rússia agiu como tal. Como foi que isso aconteceu? O chamado "século americano" já chegou ao fim e já estamos ingressando no período de formação de múltiplos centros de capitalismo global: os EUA, a Europa, a China, possivelmente a América Latina. Cada um deles representa o capitalismo com característica específica: os EUA, o capitalismo neoliberal; a Europa, o que resta do Estado de Bem-Estar Social; a China, o capitalismo autoritário de "valores orientais"; a América Latina, o capitalismo populista. Após o fracasso da tentativa dos EUA de se imporem como superpotência única, agora é necessário definir as regras de interação entre esses centros locais, no caso de seus interesses conflitantes. É por isso que nossos tempos são mais perigosos do que podem parecer. Durante a Guerra Fria, as regras do comportamento internacional eram claras, sendo garantidas pela destruição mutuamente assegurada das superpotências. Hoje, as potências antigas e novas estão testando umas às outras, tentando impor suas versões próprias das regras globais e testando-as por procuração, procuração esta entregue a outros Estados menores. Os georgianos estão pagando o preço por realizar esses testes. Embora as justificativas oficiais sejam de natureza altamente moral (direitos humanos, liberdade etc.), a natureza do jogo está clara. É o futuro da comunidade internacional que está em jogo agora: as novas regras que vão regulamentá-la, qual será a nova ordem mundial. E, retroativamente, podemos enxergar claramente que a Guerra do Iraque foi sinal de sua derrota, de sua incapacidade de exercer o papel de polícia do mundo. Os EUA simplesmente acumularam casos demais de sua "descortesia", que os desqualificaram para o papel: pressionaram outros Estados (como a Sérvia) a entregar seus criminosos de guerra suspeitos ao Tribunal de Haia e ao mesmo tempo rejeitaram brutalmente a própria idéia de que o tribunal também tivesse jurisdição sobre cidadãos americanos etc. Contrapartida Para justificar sua intervenção na Geórgia, a Rússia jogou habilmente com essas incoerências dos EUA: se os EUA puderam intervir em Kosovo e implementar a independência deste, apoiada pela presença de uma grande base militar americana ali, por que a Rússia não deveria fazer o mesmo na Ossétia do Sul, muito mais próxima do território russo do que Kosovo é do território americano? Se existe alguma lição a ser tirada do conflito georgiano é que, após o fracasso dos EUA em agir como polícia global, devemos reconhecer também o fracasso da nova rede de superpotências em fazer o mesmo. Não apenas elas simplesmente não têm condições de manter sob controle países "fora da lei" menores como, cada vez mais, provocam o comportamento agressivo destes para que travem suas guerras para elas, por procuração. Assim, a tocha da manutenção da paz passa para um círculo seguinte e mais amplo: é hora de os países menores de todo o mundo unirem seus esforços para controlar as grandes potências e impor limites aos jogos obscenos delas. Um modo cortês de lidar com a crise georgiana teria sido, por exemplo, que Rússia e Geórgia concordassem que a Geórgia tem plena soberania sobre seu território -sob a condição de que não afirmasse esse controle plenamente sobre a Abkházia e a Ossétia do Sul. Podemos até mesmo afirmar que um acordo tácito desse tipo já existia de fato e que a Rússia interpretou a intervenção georgiana na Ossétia do Sul como sua violação. A questão, é claro, é se a Geórgia agiu por conta própria ou se... Entretanto o enigma sobre por que os georgianos decidiram afirmar plenamente sua soberania e arriscar uma intervenção militar não vale a pena ser investigado. O que importa de fato é que as conseqüências desse "excesso" nos colocaram frente a frente com a verdade da situação. É hora de ensinar as superpotências a terem bons modos.
SLAVOJ ZIZEK é filósofo esloveno e autor de "Um Mapa da Ideologia" (ed. Contraponto). Ele escreve na seção "Autores", do Mais! . Tradução de Clara Allain

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Giddens e o risco manufaturado

O Professor Farlei Martins envia a nós texto de Ignacio Muro publicado na edição do jornal El País de 7 de agosto de 2008 a respeito da nova forma de riscos - o manufaturado (Giddens). E quais são as tecnologias e saídas políticas para conte-los.
Crisis sociales, riesgos manipulados
No son las dificultades las que vencen a los hombres, sino el temor",
afirmaba Shakespeare. Y el temor es una sensación que puede fabricarse, como
puede aliviarse o acentuarse, de forma inconsciente o consciente. No sólo la
influencia de las religiones, sino también el poder en general, se articula
frecuentemente sobre la conveniente manipulación de riesgos y temores. El
riesgo, la sensación de riesgo, aumenta con la globalización. Y su esencia
cambia. Los ciudadanos del mundo tienen la impresión de estar metidos en una
turbina de la que pueden salir despedidos en cualquier momento.
Mientras en el pasado, muchos daños se atribuían a los dioses, la naturaleza
o simplemente al destino, hoy, la mayor parte de los peligros que nos
amenazan parecen descansar sobre decisiones humanas. Anthony Giddens los
denomina riesgos manufacturados, porque suelen estar relacionados con la
búsqueda de ventajas económicas en procesos industriales insuficientemente
garantizados. Incluso las catástrofes naturales o el cambio climático han
dejado de ser accidentes para ser hechos imputables moral, política y
jurídicamente a los hombres. Los dioses hace tiempo que son inocentes.
En el terreno social también es habitual esa forma interesada de
manipulación de riesgos. Cualquier fenómeno como el terrorismo, la
inmigración, la dialéctica entre religiones y culturas, puede facilitar
decisiones de las que obtener ventaja inmediata, bien sea en forma de venta
de armas o de apropiación de recursos petrolíferos. Sólo se precisa que los
temores que provocan hayan sido convenientemente tratados y manipulados. La
crisis demográfica y el envejecimiento de la población son otro ejemplo.
Desde los años noventa se ha asumido el riesgo de quiebra de las pensiones
en un horizonte lejano. Ese riesgo futuro se convirtió, en seguida, en
oportunidad inmediata para obtener ventajas; por un lado, en forma de
negocio para fondos de pensiones privados; por otro, político y social, al
conseguir que sindicatos y trabajadores aceptaran ajustes o asumieran leyes
restrictivas.
Ese riesgo ha estado alimentado de múltiples noticias. Tomemos tres ejemplos
de 1996. "La ONU estima que la población española será de 29 millones en
2050", decía una. Diez años más tarde se acaban de superar los 46 millones y
la natalidad se ha recuperado. "Expertos -decía otro titular- presentan
informe que confirma la necesidad de complementar las pensiones con fondos
privados". La noticia no mencionaba que el escenario elegido utilizaba, como
hipótesis, una tasa de desempleo creciente hasta llegar al 26% en 2005, para
luego descender hasta el 20% en 2010. El "riguroso" informe estaba
patrocinado por la fundación BBVA y coordinado por José Barea, el que fuera
jefe de la oficina económica de Aznar. En el mismo año, la Dirección General
de Migraciones consideraba que la entrada de 20.000 personas al año era el
"cupo deseable" para la economía española y desechaba como inasumible "un
techo de 100.000 inmigrantes". ¿Error o manipulación?
En cualquier caso, esas cifras y noticias sobre demografía, desempleo o
inmigración contribuyeron a generar el miedo escénico necesario para
desequilibrar las relaciones sociales y debilitar el Estado de bienestar y
las fuerzas progresistas. El descenso del peso de los salarios en la
economía, excepcional en una fase expansiva, es una de sus consecuencias. En
la zona euro ha caído un 13% desde 1980, casi el doble que en los países
industrializados. En España, entre 1995 y 2007, pese al fuerte crecimiento
económico, han perdido 6 puntos porcentuales en el PIB, mientras que el
salario real medio ha bajado un 5%. La batalla continúa. La creciente
fragilidad y precariedad laboral no impide que se fuercen cambios legales
urgentes que descargan sobre el trabajo la solución al envejecimiento social
en forma de prolongar varios años la vida laboral.
De forma sutil, la ortodoxia económica, apoyada por el tremendo poder
mediático de los grandes centros de opinión, ha conseguido presentar como un
problema exclusivo de los trabajadores lo que es un problema común de toda
la sociedad. Ha conseguido que se focalice como un déficit de la Seguridad
Social, la caja particular de los trabajadores, lo que, en todo caso,
debiera asociarse a un déficit de la caja general de los ciudadanos, que es
la hacienda pública. ¿Tiene sentido? La hacienda pública financia, por
ejemplo, las pensiones no contributivas al considerarlas un derecho
ciudadano. ¿Puede desentenderse de financiar con el conjunto de impuestos
los costes del envejecimiento de la población?
Afrontado entre todos, es más fácil encontrar soluciones. El incremento del
gasto social relacionado con el envejecimiento se estima -¡para 2050!- en un
4,6% sobre el PIB en el promedio de la UE. Se presenta como "insoportable",
pero resulta que es menor que la transferencia de renta desde el trabajo al
capital provocada en los últimos años, antes citada.
En un entorno de desarrollo tecnológico no tiene sentido que la sociedad
abandone cualquier horizonte de mejora incubado durante siglos. Ahora, más
que nunca, genera suficiente riqueza para abordar cualquier crisis y
financiar cualquier proyecto sostenible. Debe, eso sí, repartir mejor su
carga. Y saber combatir los riesgos manufacturados y el reclamo interesado
de soluciones urgentes. Cuando se afronta una nueva crisis, ésa es la mejor
enseñanza. Sólo así es posible decir: "¡Juntos podemos!".